sábado, 3 de novembro de 2018



O CINEMA E A RECONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA


O cinema tem uma grande contribuição a dar quando falamos sobre a reconstrução do passado e dos fatos que envolvem o passado. Tal qual uma reconstituição de um crime, realizada com o objetivo de tentar rever o passo-a-passo da evolução de um delito, envolvendo envolvidos e peritos criminais, o filme tenta reconstruir fatos importantes de determinada temática.
O filme Bohemian rhapsody, em cartaz nos cinemas, é um ótimo exemplo de como pode ser realizada tal reconstrução histórica. O cineasta Bryan Singer, que já havia realizado X-men, soube utilizar os efeitos visuais com muita propriedade, para reconstruir o momento histórico principal em Bohemian rhapsody, a apresentação do Queen no evento Live Aid.
Como se trata de um evento da História do Tempo Presente, a apresentação original da banda pode ser vista, no longínquo 13 de julho de 1985, como se fosse hoje, graças à massiva cobertura dada pelas emissoras de TV, e assim ser comparada com a versão realizada pelo cineasta. Acesse o link https://youtu.be/A22oy8dFjqc e assista. Da mesma forma, podemos observar como a cena foi recriada, acessando o link https://youtu.be/CdqoNKCCt7A.
De qualquer forma, comparando a transmissão do Queen no Live Aid, e vendo a reconstrução do passado, realizado pelo cineasta Singer, percebemos que a versão cinematográfica não é “milimetricamente” igual. Nem poderia ser. Se assim o fosse seria uma aberração. A história não pode ser recriada, mas sim reconstituída. Assim como um crime.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018



MÚSICA É HISTÓRIA.












             Segundo Marcos Napolitano, o Brasil é uma das grandes usinas sonoras do planeta. País onde a música ocupa lugar de destaque na história sociocultural, ajudando a pensar a sociedade, bem como a nossa história.
De acordo com o autor, a música é um produto do século XX, e está intimamente ligada à urbanização e ao surgimento das classes populares e médias em nosso país.
A música popular teria surgido no final do século XIX e início do século XX e, para os críticos eruditos, representava a perda do estado de pureza sociológica e étnica que só a música erudita era capaz de expressar.
Tal qual o cinema, a música popular era, para a elite intelectual, um produto dirigido para as “massas musicalmente burras e politicamente perigosas” (NAPOLITANO, 2016, p. 18), refletindo um processo de conflito estético e ideológico.
Segundo ao autor, três fatores foram de extrema importância para a consolidação da música popular nas primeiras décadas do século XX: o surgimento do fonograma, a expansão do rádio como meio de comunicação de massa, e o surgimento do cinema falado.
A cidade do Rio de Janeiro, até os anos 1950, foi de grande importância por ser ponto de encontro de vários estilos musicais, bem como de várias influências inter-raciais e inter-regionais, como, por exemplo, a chegada de levas de migrantes nordestinos, em busca de uma vida melhor.
O autor enumera três fases importantes para a formação da tradição musical popular em nosso país: até os anos 1920/1930, ocorreu a consolidação do samba como gênero predominante no Brasil; a partir de 1959 até 1968, ocorreu a mudança do conceito de música popular brasileira; e entre 1972-1979 consolidou-se o amplo conceito como conhecemos hoje de MPB.
Napolitano conta que até meados dos anos 1940 o rádio estava em franca expansão, principalmente entre as classes populares. A cena musical foi dominada, entre as décadas de 1940 e 1950 pelo samba-canção, ritmo abolerado, de andamento lento.
Segundo Castro (2015) os sambas-canções eram sambas, lentos, românticos e confessionais.
O samba fora para a cama com a canção, numa romântica noite de bruma, e resultara neles, os sambas-canções, com suas letras narrativas, que contavam uma história — e esta, com frequência, se referia a um caso de amor desfeito, como de praxe nas músicas românticas em qualquer língua (CASTRO, 2015, p. 70).

Napolitano completa dizendo que as letras destas canções haviam perdido a ironia e o humor, presentes nas canções dos anos 1930. À época eram carregadas de sentimentalismo.
Com o surgimento da Bossa Nova, em 1959, o conceito de música popular se altera. É dada uma maior importância à mistura dos gêneros musicais brasileiros com estilos internacionais, como, por exemplo, o jazz norte-americano.
A década de 1960 mostra-se rica em embates no cenário musical. Os Festivais da Canção, apresentados pela televisão, acabam por expandir o conceito de música popular criando aquilo que seria consolidado, na década seguinte, como MPB (Música Popular Brasileira).
Com a chegada da década de 1980, a juventude escolheria um outro estilo musical: o rock.
Napolitano destaca que, para aqueles que se interessam pela pesquisa no campo de História e Música, a articulação entre texto e contexto deve ser encarada como primordial. Além disso, deve-se articular a estrutura geral da canção que envolve elementos de natureza diversa ao longo da análise, cabendo ao pesquisador tentar perceber as várias partes que compõem a estrutura.
Dessa forma, escapamos da armadilha de realizarmos nossa pesquisa analisando apenas a letra da canção, ato muito comum em trabalhos recentes, respeitando outras características que compõem a fonte sonora.
Segundo o autor, o historiador que deseje se aventurar pelo campo da pesquisa histórica-musical deve respeitar alguns parâmetros básicos para a análise da canção, que são:

1. Letra
1.1. Tema geral;
1.2. Identificação do “eu-poético”;
1.3. Ocorrência de metáforas e alegorias;
1.4. Ocorrência de referências literárias.
2. Música
2.1. Melodia;
2.2. Arranjo;
2.3. Andamento;
2.4. Vocalização;
2.5. Gênero musical;
2.6. Intertextualidade musical;
2.7. Efeitos
Napolitano destaca que a música brasileira forma um enorme e rico patrimônio histórico e cultural, sendo uma das nossas grandes contribuições para cultura da humanidade. 
Além disso, constitui território de encontros entre o local, o nacional e o cosmopolita; entre a diversão, a política e a arte, servindo como importante instrumento de pesquisa histórica.
É importante lembrar que o historiador deve dialogar com outras disciplinas para o pleno êxito de sua pesquisa. A música constitui um grande conjunto de documentos históricos para se conhecer não apenas a história da música brasileira, mas a própria História do Brasil.
Além disso, nossa música possui uma importância cultural e política que tem muito pouco paralelo em outros países.

 NAPOLITANO, Marcos. História & música. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.                   CASTRO, Ruy. A noite do meu bem. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.



domingo, 26 de agosto de 2018



OS CAMINHOS DA PESQUISA HISTÓRICA E SEUS NOVOS PANORAMAS 



Tendo por fonte de investigação o Banco de Teses da Capes, entre o ano de 1998 e 2007, Flávia Caimi analisou os resumos ali presentes, com o objetivo de averiguar quais as principais temáticas defendidas pelos pesquisadores de história, entre outros dados coletados.

De acordo com a autora, foi observado que as temáticas mais recorrentes dizem respeito à construção do conhecimento, ensino-aprendizagem, formação e prática docente e fontes e métodos.

Caimi (2015, p. 23) explica que fontes e métodos tem por finalidade analisar o uso de “determinados objetos de aprendizagem na aula de história ou nos materiais escolares”, especialmente cinema e televisão, entre outros. Além disso, a autora levanta o questionamento sobre as tendências e perspectivas em relação à direção dos estudos no campo de ensino de história.

Quanto à utilização de filmes, observa-se que os mesmos não foram produzidos com finalidade pedagógica, sendo necessário, dessa forma, que seja realizado um tratamento metodológico para essas mídias.

Além disso, faz-se necessário que o objeto fílmico não seja explorado como simples ilustração, banalizando-o. É preciso que os filmes sejam tomados“[...] como objetos de investigação histórica [...]” (CAIMI, 2015, p. 30).

CAIMI, Flávia Eloisa. Investigando os caminhos recentes da história escolar: tendências e perspectivas de ensino e pesquisa. In: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca (Org.). O ensino de história em questão: cultura histórica, usos do passado. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

quarta-feira, 25 de julho de 2018



COMUNICAÇÃO DE MASSA E
 OS NOVOS DEUSES DO SÉCULO XXI


- No que acredita, Shadow?
- Em tudo.













Crer é ver. Com essas palavras, Wednesday tenta explicar a seu discípulo, Shadow Moon, como as pessoas passam a acreditar no sagrado, ou na manifestação do invisível no mundo material.
O último episódio da primeira temporada de American Gods (2017) traz uma série de situações que expõem as questões de crença, interpretação religiosa, sagrado e profano.
A temática do episódio referido gravita em torno de enfoques como a disputa de antigos deuses, outrora adorados pelo homem, o surgimento de novas divindades e o canal pelo qual estas divindades veem ao mundo, através da mídia, ou veículos de comunicação de massa, que desde o início do século XX adentraram as residências de homens e mulheres, por todos os continentes, impondo hábitos, estilos e modas.
Dessa forma, a mídia transforma-se no novo altar, onde os novos deuses são venerados: o rádio, cinema e a televisão, no século XX, e as redes sociais, no século XXI. Em um trecho do episódio referido, o personagem Technical Boy, dá de presente um telefone celular a uma deusa esquecida, dizendo a ela que tem um novo altar para oferecê-la.
Em outra passagem, o mesmo personagem adverte Wednesday, dizendo que os tempos estão mudando e que não há como lutar contra o progresso. Em suas palavras, nada mais será como antes. Os novos deuses – Mídia, Internet, Globalização – já tomaram o lugar, outrora ocupado pelas antigas divindades.
Tudo o que Wednesday quer é que as pessoas voltem a orar pelos velhos deuses, pois a oração é o que mantém as divindades lembradas, portanto vivas. O ostracismo seria condição sine qua non para o desaparecimento dos mesmos.
Adoração, segundo Technical Boy, tem a ver com quantidade de seguidores. Quanto maior o número, melhor. Aqui, percebemos que se trata de uma referência direta às redes sociais, onde celebridades surgem sorridentes, em plataformas como Instagram ou Facebook, disputando avidamente likes de seus seguidores. Não seriam eles, os novos deuses do século XXI?
Wednesday afirma que crer é ver. Para Certeau (1988, p. 278), crer é “uma ‘modalidade’ da afirmação, não o seu conteúdo”, ou seja, trata-se da forma e não do objeto. Ou melhor, a maneira como as pessoas creem e não no que creem.
Isso pode ser observado na ocorrência dos milagres, onde os fiéis depositam sua crença em alcançar determinado resultado, independente da divindade a que foi feito o pedido.
No episódio de American Gods, há uma discussão entre Ostara[1] e Mídia, onde a primeira reclama da forma como é representada pelos meios de comunicação de massa. Mídia responde que Ostara deveria se sentir grata por, em um mundo ateu, ainda ser lembrada.
De acordo com Certeau (1988), o paganismo de outrora transferiu suas crenças para o cristianismo, elevado ao posto de religião oficial do ocidente. Posteriormente, esta crença teria sido transferida para as monarquias e repúblicas, transferindo, por sua vez, o poder das Igrejas para a política.
Nos dias atuais, estas crenças poderiam muito bem ter sido cedidas à mídia, que através de seus ditames transforma a mentalidade das gerações e elege governantes, seguindo o eterno fluxo de crenças, inicialmente imaginadas infinitas, mas que, aparentemente, tem se esgotado.
Dessa forma, os meios de comunicação de massa (mass media), impregnam o homem moderno de “[...] notícias, informações e sondagens. Jamais houve uma história que tivesse falado ou mostrado tanto” (CERTEAU, 1988, p. 287).
Observa-se uma transferência do espaço sagrado, outrora situado nos templos (ELIADE, 1992). Hoje, com o advento dos sistemas operacionais, que acompanham o indivíduo, em qualquer lugar, vinte e quatro horas por dia, há o bombardeio constante dos relatos da história imediata.

 O real contado dita interminavelmente aquilo que se deve crer e aquilo que se deve fazer. [...] A pessoa tem que se inclinar, e obedecer àquilo que “significam”, como o oráculo de Delfos. A fabricação de simulacros fornece assim o meio de produzir crentes e portanto praticantes (CERTEAU, p. 287).

O smartphone, abastecido de aplicativos e redes sociais, é o novo altar, o novo axis mundi, permitindo que se ligue o céu (o mundo das celebridades) à Terra (o mundo natural), transformando-se assim em “espaço sagrado”. Eliade (1992, p. 24) nos diz que “Os três níveis cósmicos – Terra, Céu, regiões inferiores – tornaram-se comunicantes”, permitindo que se estabeleça uma “abertura” entre os diferentes níveis, colocando o homem/mulher em contato com as divindades. No século XXI, em contato com as celebridades.
Este mesmo espaço, outrora representado por templos e montanhas, foi imaginado por Colombo como a elevação encontrada no “novo mundo”. Tratava-se de algo “como uma bola bem redonda, sobre a qual [...] estaria algo como uma teta de mulher, e a parte desse mamilo fosse a mais elevada e mais próxima do céu” (TODOROV, 1982, p. 19), que por sua proximidade com o firmamento, e, por conseguinte, com as divindades cristãs, colocaria o homem em contato com Deus.
A mídia, atualmente, seria a responsável pelo repositório contínuo de crenças e divindades. Bellotti (2011, p. 35), destaca que os territórios que se abrem nos estudos de religiões, encontram-se a mídia, a religião e a cultura, e afirma que essa expansão “[...] deve-se ao próprio impacto que os diferentes tipos de meios de comunicação tem exercido sobre o campo religioso mundial [...]”.
Moraes (2015) esclarece que o que se entende como mass media (expressão em inglês) ou mass midia (expressão aportuguesada) são os meios de comunicação de massa, que atingem um vastíssimo número de pessoas.
De acordo com o autor, o século XX marca o início da comunicação de massa, onde o rádio surge em 1901 e se populariza na década de 1930.
Entre “1907 a 1913, o cinema [...] transforma-se na primeira mídia de massa da história” (COSTA, 2006, p. 37), tanto na Europa como na América, criando-se, dessa forma, novos ícones a serem cultuados.
Com a chegada da década de 1950, a televisão começa a adentrar os lares, tornando-se, nas décadas posteriores, presença obrigatória. No Brasil, “em 1970, somente 24% dos domicílios brasileiros possuíam uma televisão, em 1980 este número chegava a mais de 56%” (ALEXANDRE, 2013, p. 128), provando, estatisticamente, a presença dos meios de comunicação de massa na maioria das residências em nosso país.
Se por um lado, as religiões se aproveitaram dos meios de comunicação, com o objetivo de difundirem suas crenças e dogmas, “inspirando a circulação de bens simbólicos, de cultura material e de consumo, e de referências religiosas” (BELLOTTI, 2011, p. 28), a mídia (englobando todos os seus segmentos, como rádio, TV e cinema, entre outros) soube também se transformar em divino, alçando seus astros e estrelas à condição de deuses merecedores de culto.
O que se observa no século XXI, graças aos avanços tecnológicos pelos quais o mass media passou, é que adentramos em uma nova era, onde Youtubers fazem o papel de cineastas e atores, transmutando-se também em divindades e modelos a serem seguidos, pois o objetivo do seguidor dos dias atuais é também divinizar-se.
De acordo com o exposto, observamos a intenção presente em American Gods, de dialogar com tais conceitos observados nos estudos de História das Religiões. A série televisiva é profícua em tratar de assuntos como sagrado e crença. Da mesma forma, coloca tais enfoques como pauta de nosso mundo atual, globalizado, conectado e, por vezes, ateu.
O personagem Shadow Moon, que, momentos antes, havia conversado sobre crença, com um possível Jesus apático, só passa a crer no mundo invisível após ver Wednesday transmutar-se em Odin, ordenando às forças da natureza que eliminassem seus inimigos, assassinando-os à sangue frio.
Segundo Wednesday, os deuses são reais, desde que as pessoas acreditem neles. Mídia chega a questionar: o que aconteceria com Deus se as pessoas decidissem que Ele não existe?  A crença, de acordo com a série, é o que mantém as divindades vivas e as pessoas criam deuses quando não entendem como algo acontece, procurando uma explicação sobrenatural para a questão. Dessa forma, há o mundo físico, onde os humanos vivem e o mundo invisível, morada dos deuses.
Para as celebridades da música, TV e cinema, as plataformas de redes sociais colocam os mesmos frente à frente com seus seguidores, eliminando a figura do sacerdote, personagem responsável, anteriormente, a realizar a intermediação entre o deus e seu fiel.
REFERÊNCIA ÁUDIO VISUAL

AMERICAN Gods. Produtores: Bryan Fuller, Michael Green, Neil Gaiman. EUA: Starz, 2017.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1988.
CHILDE, Vere Gordon. O que aconteceu na História. Rio de janeiro: Zahar, 1981.
COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
BELLOTTI, Karina Kosicki. História das religiões: conceitos e debates na era contemporânea. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 55, p. 13-42, jul. dez. 2011. Editora UFPR.
NUNES, Elton de Oliveira. Teoria e metodologia em História das Religiões no Brasil: o estado da arte. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 55, p. 43-58, jul. dez. 2011. Editora UFPR.
LIA, Cristine Fortes. História das Religiões e religiosidades: contribuições e novas abordagens. Aedos, n. 11, set. 2012, p. 549-563.


[1] Eostre, Ēostre, Ostara ou Ostera é a deusa da fertilidade, amor e do renascimento na mitologia anglo-saxã, na mitologia nórdica e mitologia germânica. Na primavera, lebres e ovos coloridos eram os símbolos da fertilidade e renovação a ela associados. De seus cultos pagãos originou-se o termo Inglês Easter e Ostern em alemão. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Eostre Acesso em 24/09/2017.

quarta-feira, 27 de junho de 2018


CULTURA, ETNOCENTRISMO E DETERMINISMO BIOLÓGICO

 

Segundo Laraia (2006), Heródoto se surpreendeu com o fato dos lícios tomarem o nome da família da mãe, e não a do pai, como os gregos. Para esses últimos, todos aqueles que não fossem seus iguais não passavam de bárbaros.
Da mesma forma, Tácito, romano e de visão tão etnocêntrica quanto Heródoto, achava extravagante a fato dos germânicos se satisfazerem com apenas uma mulher.
Marco Polo descreveu os costumes dos tártaros como um povo que as mulheres tomam à frente dos interesses da casa para que os homens se dediquem ao que interessa: a caça, a guerra e a falcoaria.
No Brasil colônia, o padre José de Anchieta relatava as peculiaridades dos tupinambás: selvagens antropófagos.
No século XVI, o filósofo francês Jean Bodin, desenvolveu a teoria que os povos do norte tem como líquido dominante o fleuma, enquanto os do sul são dominados pela bílis negra. Por isso, obviamente, os nórdicos são fiéis, leais e pouco interessados sexualmente. Enquanto isso, os povos do sul são maliciosos, engenhosos, abertos e mal adaptados para as atividades políticas.
De acordo com o autor, são velhas as teorias que atribuem capacidades específicas a determinados grupos humanos, ou mesmo às diferenças do ambiente geográfico.
Boa parte dessas teorias, que foram desenvolvidas no final do século XIX e no início do século XX, ganharam grande popularidade. Exemplo significativo desse tipo de pensamento pode ser encontrado em Huntington, em seu livro Civilization and Climate (1915), no qual formula uma relação entre a latitude e os centros de civilização, considerando o clima como um fator importante na dinâmica do progresso.
No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo.
Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que "tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade".
Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


quinta-feira, 24 de maio de 2018



                              CARAVELAS, NAUS E A EXPANSÃO MARÍTIMA                              PORTUGUESA NOS SÉCULOS XV E XVI



Portugal, um pequeno país localizado na Europa, transformou-se, nos séculos XV e XVI em um grande império, com colônias localizadas em vários pontos do planeta. Grande parte dessa expansão deve-se à tecnologia envolvida na construção de embarcações portuguesas, que inovaram a forma de vencer grandes distâncias, bem como as intempéries. Podemos, inclusive, comparar a tecnologia utilizada naquela época às atuais naves espaciais, que levam o homem a desbravar o nosso sistema solar.
O documentário Caravelas e naus - um choque tecnológico no século XVI, tenta desvendar o modo de construção destas embarcações. O conhecimento era passado de forma oral, geralmente de pai para filho, segundo Richard Unger, professor da University of Britsh Columbia, não havendo registros escritos . De acordo com Unger, sabemos mais sobre as embarcações de 2000 anos atrás do que sobre as caravelas e naus dos séculos XV e XVI, justamente pela escassez de documentação de época.
Entre as inovações trazidas pela utilização das caravelas poderíamos elencar o fato dela apresentar a capacidade de navegar contra o vento, bem como em águas de pouca profundidade. As naus surgiram como embarcações descomunais, medindo de 27 a 60 metros de comprimento, podendo transportar até 800 pessoas, sendo de grande importância para viagens longas, como a realizada para o Oriente, que levava, em média, um ano.
Todo esse pioneirismo na construção naval levou Portugal, a partir de 1415, de acordo com Bethencourt e Curto (2010), a iniciar sua diáspora, ou seja, a navegar por águas nunca antes navegadas. Os autores elencam esse dado como essencial para o êxito de Vasco da Gama ao chegar a Índia, entre 1497 e 1499. Com isso, Portugal estabeleceu contato com outras culturas, mobilizando enormes contingentes humanos, levando os ensinamentos cristãos e trazendo ouro, marfim, peles e tudo o que fosse capaz de aumentar a riqueza da Coroa Portuguesa.
O processo de colonização estendeu-se pela América, África e Ásia. Portugal se viu dominando colônias em terras longínquas, o que levou outras nações, como a Inglaterra e Holanda, a enveredarem pelos mares em busca de conquistas. Os séculos XVII e XVIII são palco de disputas entre essas potências europeias. Entretanto, Portugal, detentora da tecnologia naval necessária, ocupou primeiramente o posto de liderança no domínio de terras, principalmente no Novo Mundo.    
Podemos observar, de acordo com o trabalho de Bethencourt e Curto (2010), que o Brasil tem lugar privilegiado como colônia, uma vez que, por conta de suas riquezas minerais, pelo açúcar e outros meios de obtenção de renda, sustentou a opulência da corte portuguesa. Nas palavras dos autores, “[...] entre 1650 e 1680 o Brasil e as suas fontes de abastecimento africanas tornaram-se o coração incontestado do império, e assim permaneceram durante todo século XVIII” (BETHENCOURT; CURTO, p. 24), confirmando essa afirmação.
De fato, as incursões dos países europeus pelas Américas, África e Ásia só foram possíveis graças ao espírito pioneiro dos construtores navais portugueses dos séculos XV e XVI, que conseguiram inovar, construindo caravelas e, posteriormente, naus capazes de singrar os oceanos, desbravando distâncias e atingindo terras desconhecidas. Graças a esses construtores Portugal mereceu seu lugar de destaque nas conquistas além-mar.

Referência audiovisual
Caravelas e Naus: um choque tecnológico no século XVI. Direção: António José Almeida. Produção: Telefilme. Portugal, 2007. 48 min.

Referência bibliográfica

BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A expansão marítima portuguesa (1400-1800). Lisboa, Portugal: Edições 70, 2010.

domingo, 25 de março de 2018



O DESAFIO DO ENSINO DE HISTÓRIA























SILVA, Marcos; GUIMARÃES, Selva. Ensinar história no século XXI: em busca do tempo entendido. Campinas, SP: Papirus, 2012.

Os historiadores Marcos Silva e Selva Guimarães trazem em Ensinar história no século XXI, um apanhado do quadro docente em nosso país, desde o período do Regime Militar até os dias atuais.

Segundo os autores, entre os anos 1980 e 1990, a categoria docente moveu-se entre dois polos: proletarização e profissionalização, evidenciando o desprestígio alcançado pela profissão docente.

Além disso, em relação à escolha da profissão docente, Silva e Guimarães citam pesquisas que indicam que a carreira é vista, pela maioria dos jovens, como transitória e desvalorizada. Por essa razão, fadada a atrair os menos talentosos.

No âmago da questão – o ensino de História – os autores trazem uma série de possibilidades ao alcance do professor de História, evidenciando a interdisciplinaridade como via comum, graças ao advento da Escola de Annales que, desde a década de 1930, buscou o “conceito universalizante das fontes de pesquisa” (SILVA; GUIMARÃES, 2012, p. 66).

Ao discutir história, preservação documental e cultura material, os autores enfatizam o museu, “uma instituição que se destaca [...], tendo em vista seu importante papel de preservar e pesquisar acervos preciosos de objetos tornados raros” (Ibid., p.71).

Da mesma forma, Silva e Guimarães chamam a atenção para a utilização do filme documentário no ensino de História, pela possibilidade que o mesmo tem de suscitar imaginários. De acordo com os autores, “as relações entre história e cinema ultrapassam o gênero ‘cinema histórico’; se tudo é história, todo cinema interessa à história” (Ibid., p. 92).

Outra ferramenta de grande importância, e extremamente presente nos dias atuais, diz respeito ao computador pessoal, bem como a internet. O primeiro tem servido para desenvolvimento de banco de dados, e o segundo ao acesso às redes de comunicação.

Entretanto, os autores chamam atenção para a fragilidade dos suportes utilizados na informática, vulneráveis a vírus e acidentes de uso. Além disso, o computador não substitui a presença do professor, que se faz necessário para o correto desenvolvimento da pesquisa e do ensino de História.

Outro ponto importante levantado pelos autores diz respeito à formação do professor de História. A formação inicial tem como problema a distância entre o conhecimento recebido no curso superior e a realidade encontrada na sala de aula, devendo o profissional da História estar comprometido com sua formação continuada.

Finalizando, os autores evidenciam aquele que é sempre apontado como responsável pelo insucesso do ensino de História: o livro didático, que “submetido à leitura crítica e colocado em diálogo com outros elementos de estudo é um suporte de trabalho que pode render bons resultados” (Ibid., p, 127).

Em Ensino de história no século XXI, somos apresentados a situação em que estão inseridos os professores, como classe profissional, bem como a instrumentos úteis e importantes no processo de ensino-aprendizagem dessa disciplina. Dessa forma, compreendemos a importância da leitura dessa obra para aqueles que tem interesse em aprofundar seus conhecimentos nessa área.

sábado, 24 de fevereiro de 2018



UM FILME PARA LER. UM LIVRO PARA ASSISTIR.



FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

Marc Ferro foi o historiador pioneiro sobre o tema cinema e história. Seu livro é uma coletânea de textos escritos a partir da década de 1970, no qual o autor tece paralelos entre a história e as obras fílmicas, mostrando que as mensagens implícitas estão por toda parte nos filmes, mesmo contra a vontade dos cineastas.

Hoje, o filme é uma fonte, tanto nos arquivos como nas pesquisas. Algo impensável na década de 1960, quando o tema foi cogitado, causando ebulição nos meios acadêmicos.
Até metade do século XX, o cinema e a fotografia não tinham essa representação, esse poder. Apenas a pintura podia ser considerada arte erudita. As demais fontes imagéticas não passavam de arte popular.
O grupo da Nouvelle Vague, por meio de seus escritos e filmes, nos anos 1960, conseguiu colocar o cinema em pé de igualdade com a chamada arte erudita, e mais ainda, transformando o filme em filme histórico.
Dessa forma, a obra fílmica passou a ser encarada como fonte histórica, por vezes, revelando mais sobre a época em que foi realizada, do que sobre a época retratada.
Os dirigentes políticos, por outro lado, já haviam descoberto a muito tempo o poder do cinema, tentando apropriar-se do mesmo com o intuito de controlar as massas.
Até as primeiras décadas do século XX, as fontes obedeciam a uma certa hierarquia, onde os documentos do Estado desfrutavam de maior prestígio. O cinema, por sua vez, ainda emergente, era considerado uma “atração de quermesse”, um “espetáculo de párias”, onde o homem culto não seria encontrado.
O professor e o magistrado frequentavam a ópera e o museu. Jamais estariam dispostos a se envolver com a arte popular ou com a “máquina de idiotização”, como era considerado o cinema.
Hoje, podemos perceber que o cinema permite uma abordagem sócio-histórica, assim como serve de testemunho. Nessa abordagem, é necessário que se aplique a análise dos substratos individualizados do filme, tais como as imagens (sonorizadas ou não), relações entre os componentes, narrativa, cenário e outros. Tudo com o objetivo de melhor compreender tanto a obra quanto a realidade nela representada.
Dessa forma, é possível analisar uma obra como Po Zaconu (1925), adaptada de um conto de Jack London, tendo como cenário o Canadá, mas que representa, na realidade, a sociedade soviética do início do século XX.
Igualmente, as imagens de cinejornais de 1917, em Petrogrado, fornecem material para rica análise histórica.
De acordo com as imagens, registradas entre fevereiro e outubro de 1917, é possível perceber que há uma variante no que diz respeito à participação da classe média perante as manifestações.
Em princípio, observa-se um clima de unidade, transformando-se em indiferença e, por fim, terror. Além disso, as imagens são claras em mostrar a grande participação de soldados e a ausência de operários, fato confirmado pela iconografia de época.
Dessa forma, pode-se perceber que um filme sempre vai além de seu próprio conteúdo. Além disso, devemos nos ater, principalmente, aos lapsos do cineasta, pois é aí onde mora o real verdadeiro do filme, e não em sua representação do passado.
Três exemplos são profícuos nessa análise: A greve (1924), Tchapaiev (1934) e O encouraçado Potemkin (1925).
Em A greve, Eisenstein cria a História, por meio de um apanhado de greves ocorridas na Rússia, no período anterior a 1917. Da mesma forma o faz em O encouraçado Potemkin.
Em Tchapaiev, a ação se passa em 1919, com acenos a Lênin e narrativa mostrando o enlace entre a cidade e o campo (operários e camponeses) através do romance entre o soldado Petka e a camponesa que deseja aprender a manipular uma metralhadora, Anna.
A mensagem principal do filme é que o homem pode morrer (o protagonista é assassinado no final), mas o partido é eterno.
Trotsky, em 1923, já profetizava o poder do cinema, quando o classificou como o melhor instrumento de propaganda existente.
Dono de significado próprio, o filme consegue escapar do controle, tanto do cineasta, que não consegue apreender a significação da realidade que mostra, como também do censor. O texto também consegue tal feito, entretanto, as imagens são mestras nesse quesito.
No início da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente entre setembro de 1939 e junho de 1940, enquanto a França, já envolvida no confronto, não produzia filmes antinazistas, os Estados Unidos o faziam a pleno vapor.
E não só filmes antinazistas. Nos Estados Unidos se produziam filmes antijaponeses, filmes para justificar a aliança com os soviéticos e filmes de ex-comunistas.
Por outro lado, surgiram, durante e após a Segunda Guerra Mundial, filmes antimilitaristas, paródicos ou marginais, abordando desde o espírito do ambiente militar, ao funcionamento da instituição. Entretanto, sem abordar o seu papel social.
Há diversas vertentes possíveis de leitura de um filme, bem como diversos recursos utilizados pela linguagem cinematográfica.
Um desses recursos é a fusão encadeada – utilizada em O judeu Suss – que mostra a passagem sutil de um plano a outro, com o objetivo de simbolizar, por exemplo, a passagem de poder dos arianos para os judeus, ou a transformação física do personagem, mostrando-o como de “duas caras”.
A escolha da fusão encadeada reveste-se de uma significação ideológica, consciente ou não, por parte do cineasta.
O que é observável é que o filme está repleto de mensagens implícitas ou explícitas.
O terceiro homem (1949) foi pensado inicialmente como um filme para diversão, por seu roteirista. Entretanto, transformou-se em tragédia política nas mãos do cineasta.
Nesse filme não existe um “herói positivo”. O bem e o mal se misturam em cada personagem, e a mensagem final é que quem quer que se envolva com os soviéticos conhecerá a desonra, ou mesmo a morte. Os americanos não tem caráter, além de serem fúteis e irresponsáveis.
A grande ilusão (1937), por sua vez, mostrava que a verdadeira realidade da história não estava na luta entre as nações, mas na luta entre classes, simbolizado pela fraternidade entre os combatentes entre 1914-1918. Fato que não se manteria após o conflito. Com a paz, a barreira de classes renasceria maior do que nunca.
Todas essas mensagens, presentes implicitamente nos filmes, precisam de um público capaz de captá-las. Essas apreciações identificam a cultura ao saber, significando que o cinema exerce uma função educativa.
Assim, o governo soviético descobriu o cinema como uma máquina a serviço da revolução, ajudando a legitimar o levante de outubro, que por sua vez contribuiu para legitimar o próprio cinema.
Entretanto, o público das zonas rurais não conseguia entender passagens, como por exemplo, a cena final de A greve, aclamado por uma audição mais culta. Nem Outubro, quando as pessoas saiam antes do final da exibição, por acharem que o filme já chegara ao fim.
Diferentemente, Tchapaiev tornou-se o filme n. 1 na memória dos soviéticos, ao trocar o herói coletivo de Eisenstein, pelo homem comum, alçado ao posto de herói nacional.
O filme, oriundo do cinema ou da televisão, tem papel importante na construção da História. Com fatos imaginários, o cineasta torna a História inteligível. A ficção, dessa forma, dá conta das situações de um dado tempo.
O objetivo da História é a análise dos elos que unem o passado ao presente. Nesse aspecto, a televisão se tornou uma “escola paralela”, principalmente entre os povos que não tem uma tradição histórica escrita.
A ficção, presente em O encouraçado Potemkin ou em Napoleon, ajudou a criar a História, ou parte dela, graças ao imaginário de seus cineastas. O filme histórico acaba por se tornar, dessa forma, uma transcrição fílmica de uma visão da história que foi concebida por outros.
Há muitos outros filmes que contribuem para o entendimento da sociedade. Considera-se, entretanto, que os discursos sobre a sociedade podem emanar de quatro instâncias: das instituições dominantes, dos oponentes dessas instituições, da memória social e das interpretações independentes.
Um bom exemplo da consciência histórica do cinema é encontrado no cinema americano, que considera a Guerra Civil o ato fundador da História dos Estados Unidos, apagando a Guerra da Independência.
Um filme sobre a Guerra da Independência deveria evocar o conflito contra a Inglaterra. Esse fato não é desejado pelos norte-americanos.
Dessa forma, o cinema dos anos 1920-1950 não insiste nessa ruptura com a Inglaterra, tornando a Guerra Civil o marco inicial da sociedade americana no cinema.
Importância também deve ser dada ao fait divers, recurso de narrativa cinematográfica que diz respeito a uma ou duas pessoas, que não modifica o curso da história, mas ajuda a compreendê-la.
Inúmeros filmes na Nouvelle vague pertencem a essa categoria, mas M., o vampiro de Dusseldorf, foi o pioneiro.
Trata-se de uma trama sobre garotas assassinadas por um sádico que aterroriza a cidade de Dusseldorf no final dos anos 1920.
Os historiadores do cinema viram nesse filme uma espécie de reflexo da sociedade, em que os bandidos representam os nazistas, e seu líder, o próprio furher.
De acordo com Ferro, Fritz Lang foi, sem dúvida, o primeiro cineasta que soube fazer uma análise científica de um caso de sociedade.

P.S.: Fiz esse resumo ouvindo O adeus de Fellini (1985) e 3 lugares diferentes (1987), ambos da banda Fellini.