terça-feira, 19 de dezembro de 2017


REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS SOBRE JOANA D’ARC:
A HISTÓRIA DE ACORDO COM FLEMING E BESSON
(comunicação apresentada no IV Encontro de História Antiga e Medieval de Pernambuco)

Marcelo FERRAZ


INTRODUÇÃO

Até as primeiras décadas do século XX, consideravam-se como fontes apenas os documentos oriundos do Estado. Marc Ferro, em sua obra Cinema e História[1], lista, inclusive, a hierarquia dentro das fontes. No topo da lista, encontravam-se  os Arquivos de Estado, seguidos pelos documentos do Judiciário e do Legislativo, Jornais e Biografias. Após o advento dos Annales, e posteriormente na década de1970, com o trabalho pioneiro de Marc Ferro, e mais recentemente com os estudos da Nova História, as obras cinematográficas foram promovidas à fontes historiográficas.[2]
Giovanni Alves, em sua obra, Cinema e trabalho[3], classifica o cinema como a arte mais completa do século XX, por aglutinar outras expressões artísticas como a música, a dança e a literatura. Entretanto, é necessário que respeitemos a natureza ficcional do cinema. Muitos filmes falarão mais sobre a época em que foram produzidos do que sobre a época que procuram retratar.
Dentro do nosso assunto, Joana d’Arc tem sido tema de diversas obras cinematográficas, explorada desde os primórdios do cinema.[4]
Na virada do século XIX para o século XX, Georges Méliès escreveu, produziu, dirigiu e atuou em Jeanne d'Arc (1900), filme francês mudo, produzido em preto e branco, com apenas 19 minutos de duração. Em 1928, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer realizou La passion de Jeanne d’Arc, com roteiro baseado nos documentos históricos do julgamento da francesa. Em 1948, Victor Fleming lança Joan of Arc, baseada em uma peça de grande sucesso na Broadway, com Ingrid Bergman como protagonista. Em 1962,  o cineasta francês Robert Bresson lançou Procès de Jeanne d'Arc, retomando a temática do julgamento da francesa, como o fez Carl Theodor Dreyer, em 1928. E finalmente, em 1999, Luc Besson lança Joan of Arc..
Sobre as diversas versões fílmicas que tiveram como tema principal a imagem da heroína francesa, o crítico de cinema Inácio Araújo, em artigo para o jornal Folha de São Paulo, faz um interessante paralelo entre as mesmas:

Dreyer fez a sua [versão] na era muda extraindo tudo da expressividade de sua atriz, Falconetti. [...]. Robert Bresson fez sua versão contra a de Dreyer [...], retirando de Joana toda expressividade. [...]. A versão de Victor Fleming é pouco feliz, talvez por ter no centro uma estrela como a atriz Ingrid Bergman. Já a de Luc Besson corresponde, tristemente, eu diria, aos dias atuais. Temos uma Joana d'Arc em cena, mas poderia ser também Bruce Lee. [...] sua religião é a porrada [...] (ARAÚJO, 2006, p. 6).[5] 

Com estas palavras, Araújo consegue sintetizar as diferenças encontradas nas diferentes versões sobre a vida e morte de Joana d’Arc levadas às telas do cinema. Entretanto, além das disparidades, muitas características em comum se sobressaem nas obras cinematográficas apontadas. Como produtos de um determinado tempo, os filmes devem ser entendidos como tal, levando-se em consideração o seu contexto de produção e o seu discurso implícito.
Dentre estas cinco obras, resolvemos traçar um comparativo histórico entre as películas lançadas em 1948 (Victor Fleming) e 1999 (Luc Besson).

JOANA D’ARC SEGUNDO FLEMING E BESSON

A obra de Victor Fleming, lançada em 1948, foi produzida no período pós-guerra, no momento em que se reconstruía a Europa, devastada pela Segunda Guerra Mundial. Nesta obra, a religiosidade da personagem principal é um dos pontos mais fortes observados em sua caracterização. A fotografia criada para o filme faz com que associemos a imagem de Joana d’Arc à imagem da Virgem Maria. Ingrid Bergman conduz sua interpretação criando uma personagem virginal e pueril em suas falas, seus gestos e, principalmente, seu olhar.
O roteiro escrito para o filme traz muitos pontos em comum com o relato de Régine Pernoud[6], que por sua vez foi escrito com base na documentação original do processo ao qual levou Joana d’Arc à fogueira.
A película de Luc Besson, cineasta francês, lançada na época do aniversário dos 210 anos da Revolução Francesa, mostra-nos uma Joana d’Arc mais incisiva, colérica e, por vezes, insana. A atuação da atriz croata Milla Jovovich conseguiu impor à Joana d’Arc de Besson uma certa aura de insanidade e belicosidade até então não vista, em se tratando da heroína francesa.
Entretanto, tal disparidade entre as duas narrativas são fruto de seu lugar social. As duas cenas que tratam da morte de Joana d’Arc definem as diferenças entre as abordagens fílmicas.
No filme de Fleming, em seus momentos finais (2:23:56), um representante da Igreja diz: “Vá, filha de Deus, filha da França. Vá!” Tal discurso tenta mostrar uma ruptura dentro da própria Igreja, onde uma facção condena, deliberadamente, Joana d’Arc, e outra a reconhece como inocente e enviada de Deus. Joana (Ingrid Bergman), já devidamente acorrentada e sendo consumida pelas chamas, diz candidamente: “Doce Deus, esteve sempre comigo. Esteja comigo agora!” Em suas palavras finais, Joana repete: “Jesus! Jesus! Jesus!” Tal acontecimento vem corroborar o relato de Pernoud (1996, p. 156), que afirma que em seus últimos momentos de vida Joana “não parava de clamar pelo nome de Jesus”. A cena final fica por conta do enquadramento de uma cruz cristã e da imagem do céu, onde pode ser vista uma luz que penetra por entre nuvens escuras, iluminando o mundo. Configurando seu discurso, Fleming nos mostra sua mensagem, tornando sua Joana d’Arc uma santa, uma enviada do divino ao povo francês.
Besson nos mostra o contrário. Sua cena final (2:31:48) é impressionante e reveladora. Para Besson, a Igreja é, antes de salvadora, assassina. A cruz cristã surge por trás das chamas que consomem o corpo da inquieta Joana d’Arc. Enquanto a Joana de Fleming morre passivamente entre as chamas, em uma tentativa de transformá-la em santa, a Joana de Besson morre debatendo-se, tentando a todo custo sobreviver enquanto é devorada pelo fogo, como um animal no abatedouro, prestes a ser sacrificado. Joana não é santa, mas humana, agindo como qualquer outra pessoa que estivesse sendo consumida pelo calor das chamas. Aqui não há Deus salvador, mas há uma Igreja que se refestela com o crime de um julgamento falso, que serve apenas a interesses particulares, onde os poderosos dizem quem deve ir para a fogueira. A Joana d’Arc de Luc Besson é insana, violenta e humana.

CONCLUSÃO

As obras cinematográficas permitem uma infinidade de interpretações e uma figura tão retratada como Joana d’Arc faz com que essa exuberância de análises se multiplique. Além disso, o cinema permite que sejamos inseridos no contexto espaço-tempo ao qual assistimos. Por algumas horas somos levados aos campos de batalha da Guerra dos Cem Anos, seguimos Joana d’Arc em seus embates e assistimos ao seu julgamento e morte.
Nas obras aqui comparadas, tivemos a oportunidade de examiná-las de acordo com a época em que foram realizadas. Para Fleming, no final dos anos 1940, a imagem da mulher, submissa e frágil, resulta em uma narrativa sobre Joana d’Arc caracterizada pela passividade e devoção. Diferentemente, a heroína de Besson, materializada em fins dos anos 1990, apresenta-se como uma mulher independente, ativa e belicosa. Tudo isso torna a temática sobre as representações fílmicas de Joana d’Arc extremamente atraente para aqueles que se dedicam à História, principalmente à História Medieval.

REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS

A PAIXÃO de Joana d’Arc. Título original: La Passion de Jeanne d'Arc. Direção: Carl Theodor Dryer. França: Société Générale des Films, 1928. 82 min.

GIOVANNA d’Arco al rogo. Direção: Roberto Rossellini. Itália: Produzioni Cinematografiche Associate, 1954. 76 min.

JOANA D’Arc. Título original: Joan of Arc. Direção: Victor Flemming. Produção: Walter Wanger. Estados Unidos: Sierra Pictures, 1948. 145 min.

JOAN D’Arc de Luc Besson. Título original: Jeanne d’Arc. Direção: Luc Besson. Produção: Patrice Ledoux. França: Gaumont, 1999. 158 min.

JEANNE d'Arc. Direção: George Méliès. Produção: George Méliès. França: Star Film Company, 1899. 19 min.

O PROCESSO de Joana d’Arc. Título original: Procès de Jeanne d'Arc. Direção: Robert Bresson. Produção: Agnès Delahaie. França: 1962. 65 min.






[1] FERRO, Marc. Cinema e História. São paulo: Paz e Terra, 2010. p. 28.
[2] SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. Cinema e historiografia: trajetória de um objeto historiográfico (1971-2010). História da historiografia, Ouro Preto, n. 8, abr. 2012, P. 152.
[3] ALVES, Giovanni. Trabalho e cinema: o mundo do trabalho através do cinema. Londrina: Praxis, 2006. p. 286.
[4] BUENO, Rodrigo Poreli Moura. A Cultura Medieval sob o Ângulo das Imagens Cinematográficas. XXVII Simpósio Nacional de História ANPUH, 22-26 jul. 2013. p. 3.

[5] ARAÚJO, Inácio. Luc Besson cria Joana d’Arc da pancadaria. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada, p. 6, 7 nov. 2006. p. 6. Disponível em http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/11/07/21/  Acesso em 20/06/2017.
[6] PERNOUD, Régine. Joana D'Arc, a mulher forte. São Paulo: Paulinas, 1996.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.