segunda-feira, 31 de outubro de 2016


CRONOS E A HISTÓRIA




José Carlos Reis, no primeiro capítulo de seu livro Teoria & história, intitulado O tempo histórico como “representação”, propõe uma discussão sobre o tempo histórico e levanta uma série de pontos de vista e análises sobre as diferenças de concepções dentro da historiografia e da linearidade temporal da vida humana.

O tempo está na natureza ou está na consciência? Como podemos definir presente, passado e futuro? Com essas indagações, Reis procura inculcar em nossas mentes a importância da definição de temporalidade, e de lá tentar extrair suas definições.

De acordo com o autor, o relógio mecânico surgiu na vida do homem entre 1300 e 1650, mudando completamente a forma como as sociedades começaram a se relacionar com o tempo, e filosofa quando nos diz que o tempo  seria a constante redução do ser ao nada, pela descontinuação e sucessão do ser. O próprio Aristóteles entra na discussão. Afinal, como falarmos de um ser que é e não é? Ou, que foi e não é mais? Não seria essa a própria essência do tempo?


E, talvez a mais importante incógnita, quando termina o passado e quando começa o presente? Segundo o autor, o passado é a única dimensão que pode ser objeto de conhecimento, não sendo mais a negação da existência, mas a afirmação do ser. O presente é o ponto de partida de toda representação do tempo, dividindo-o em passado e futuro, sendo este último o portador tanto do medo da finitude, quanto da esperança de ser.

Assim, poderíamos dizer que todo trabalho de história é uma organização temporal, com seus recortes, ritmos, periodizações e sequências. Narrar uma história não é (re)vivê-la, mas, uma operação cognitiva, que exige a teorização. Nessa perspectiva, o tempo histórico se confunde com a dimensão do passado das sociedades humanas e a história é “o estudo dos fatos humanos do passado”.

Os Annales combateram a historiografia tradicional sustentando que o passado e o presente se relacionam determinando-se reciprocamente. Assim, o historiador deve partir do presente ao passado e retornar do passado ao presente. Por seu método retrospectivo, o passado só é compreensível se o historiador for até ele com uma problematização suscitada pela experiência presente e bem formulada racionalmente.

Com isso, surge-nos o termo “tempo-calendário”, indispensável à vida dos indivíduos e das sociedades e essencial ao historiador, detentor de um evento fundador, que abre uma nova época, a partir do qual se cortam e se datam os eventos. Desse ponto pode-se percorrer o tempo em duas direções: do presente ao passado e do passado ao presente. O tempo-calendário não é só astronômico, porque o ponto inicial é um evento que teria rompido com uma época e aberto outra. No Ocidente, este evento divisor de épocas foi o surgimento de Cristo e todos os eventos são “datados”, inseridos no tempo-calendário, acompanhados da informação a.C. ou d.C.

Além disso, as datas não podem deixar de ser sempre as mesmas para qualquer historiador, pois a datação em história é realista e consensual. Assim, o primeiro esforço do historiador é produzir uma sucessão rigorosa dos eventos, onde, o conhecimento das datas supõe a compreensão de sucessões e  sincronismos.

Segundo Reis, o tempo histórico é representação intelectual, por não ser uma reconstituição dos fatos tal como aconteceram; e uma representação cultural, por ser fruto de uma época determinada. Daí partimos para as diferentes representações temporais de acordo com algumas concepções. Os gregos acreditavam no movimento circular, contínuo e infinito, não revelando o tempo, mas a eternidade, de onde puderam criar a história porque viram que alguns aspectos dessa experiência temporal tinham direito à eternidade e poderiam ser repetidos. Diferentemente, os judeus deram ao tempo a imagem de uma linha, onde, no futuro haveria a salvação e o fim do sofrimento, com o retorno do messias. A partir do século XVIII, a profecia cristã torna-se utopia. A ideia do progresso generaliza-se A esperança escatológica cede lugar à confiança no futuro terrestre. O apocalipse cede lugar à utopia, a modernidade rompe com o passado e se abre para o futuro.

Reis nos conta que o grande evento que definiu nossa época ocorreu em 1989, com a queda do muro de Berlim, representando o fim do projeto comunista. Com isso, vivemos uma época veloz, entretanto, com pretensões de eternidade, com a busca vertiginosa de inovações e lucro e com a tragédia do desemprego, sem futuro para os homens.

Em nossos dias, o presente deseja se olhar como se fosse já histórico e volta-se sobre si mesmo para controlar a imagem que o futuro lançará sobre ele quando for passado. Como exemplo, Reis cita o 11 de Setembro, que se dá a ver enquanto ocorre, acontecendo sob as câmeras e os olhares do mundo todo. O presente fazendo-se história para o futuro.

Propondo uma reflexão sobre a conceituação e sua relação com a história, Reis lança luz sobre um tema tão complexo e misterioso, que faz o homem se por a pensar desde muito, em um amálgama de história e filosofia, que extrapola conceitos concretos. 

REIS, José Carlos. O tempo histórico como “representação”. In:____ Teoria & história : tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DO GOLPE À DITADURA


                                                                                       
Carlos Fico, doutor em história social (USP), é uma das maiores autoridades sobre o regime militar brasileiro e autor de vários trabalhos sobre o tema. Em seu livro O golpe de 64, Fico faz emergir dois pontos de grande importância sobre o período. O primeiro, é que o golpe de 1964 foi de origem civil-militar e não apenas militar, pois contou com o apoio de grande parcela da sociedade civil, que queria, a qualquer preço, a saída de João Goulart da Presidência da República. O segundo ponto nos fala sobre o fato de que o golpe não pressupunha a ditadura que se seguiu, ou seja, o remédio a ser utilizado contra a doença teve reações adversas amargas. O que começou com um Golpe de Estado, acabou por transformar-se em ditadura.

Evento-chave da história recente do Brasil, o golpe de 1964 teve grande apoio da Igreja, parte da imprensa e de outros setores da sociedade, que anos depois viriam a se arrepender, e engrossariam as fileiras contra o regime militar. O golpe não foi uma iniciativa de militares desarvorados, pois contou, inclusive, com o apoio financeiro e logístico do governo norte-americano.

Fico nos mostra o panorama político antecedente ao golpe. Jânio Quadros, que havia sido eleito presidente da República em 1960, enviou o seu vice-presidente, João Goulart, para uma visita à China, com o objetivo de (com seu vice-presidente o mais longe possível, literalmente) encenar uma renúncia teatral e assim, voltar ao poder nos braços do povo, angariando mais força política.

O plano irresponsável de Jânio Quadros jogou o Brasil em uma crise política imensa. Sua renúncia foi prontamente aceita pelo Congresso Nacional e os comandantes das Forças Armadas resolveram não aceitar João Goulart como presidente da nação, por acreditarem ser ele comunista. Ideia que o autor não concorda, por ser João Goulart proprietário de grandes extensões de terra no Rio Grande do Sul.


Nesse ínterim, o governador gaúcho Leonel Brizola lançava a “Rede da Legalidade”, campanha que utilizava, por meio de pronunciamentos pelo rádio, a defesa pelo direito do vice-presidente assumir a Presidência da República.

Com o país vivendo um verdadeiro caos político, chegou-se a uma solução inusitada. O país adotaria o sistema parlamentarista, que limitaria os poderes do presidente da República. Entretanto, em 6 de janeiro de 1963 foi realizado um plebisto tendo como resultado o retorno do sistema presidencialista.

João Goulart vinha sendo sistematicamente atacado por campanhas empreendidas pelo Ipes e Ibad, duas associações de empresários que tinham por objetivo desestabilizar o governo, que segundo Fico, recebiam, inclusive, recursos financeiros do governo norte-americano para tal. De acordo com Fico, depois de sair vitorioso no plebiscito de 1963, Goulart decidiu-se a favor de uma estratégia desastrada e se envolveu em duas situações cruciais para a sua deposição: o famoso comício da Central do Brasil, de 13 de março de 1964, e seu discurso no Automóvel Club do Brasil, no dia 29. Este último, uma festa realizada pela Associação do Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar, que foi entendida pelos oficiais como se o presidente estivesse prestigiando a quebra da hierarquia. Ou seja, um desastre, pois lá seria seu último discurso como presidente da República.

Fico expõe em seu livro a relação da “Marcha Pela Família” com a “Cruzada do Rosário”, movimento criado em 1945, nos Estados Unidos, pelo padre irlandês Patrick Peyton, além de nos descrever a importância do discurso de Goulart no desagravo de lideranças religiosas para a origem das “Marchas Pela Família”.

De acordo com o autor, os conspiradores acreditavam que João Goulart aproveitaria o apoio que tinha dos sindicatos e, por meio de um golpe de Estado ou de algumas medidas de força sucessivas, instauraria um regime político inspirado no peronismo argentino, no qual prevaleceria a vontade dos sindicatos, instaurando, posteriormente, um regime decididamente comunista na Brasil.

Em uma decisão pessoal, que inclusive, atropelou outros chefes militares, o general Olympio Mourão Filho, deflagrou o golpe. Suas tropas iniciaram o deslocamento em direção ao Rio de Janeiro, onde todos os conspiradores esperavam grande resistência da parte de Goulart. Fato que não ocorreu. Por outro lado, o governo dos Estados Unidos estava pronto para dar apoio militar e logístico aos conspiradores, o que depois se mostrou desnecessário, por não haver resistência por parte do presidente Goulart. Rapidamente, ainda de madrugada e no escuro, o Congresso Nacional declarou vacância do cargo de presidente da República e empossa Ranieri Mazzilli, o presidente da câmara, como novo presidente do Brasil.

Nas primeiras horas do dia, Costa e Silva, tentando manter-se como homem forte do novo regime, reuniu-se com os governadores no Ministério da Guerra. Esse fato para Fico é de extrema importância, pois aí dá-se a passagem do golpe civil-militar à ditadura militar. Lacerda, governador da Guanabara, tentava convencer Costa e Silva da necessidade de imediata definição e o general o interrompia, dizendo não ser oportuno fazer-se eleição naquele momento. Além disso, o livro nos mostra como foi planejada a criação dos Atos Institucionais e a tentativa de dar legalidade ao golpe que mergulhou o nosso país em um de seus mais tenebrosos capítulos.

O golpe de 64 é leitura obrigatória para aqueles que desejam se aprofundar sobre o tema, ou mesmo aqueles que buscam conhecer um pouco mais sobre a história do Brasil.

FICO, Carlos. O golpe de 64: momentos decisivos. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

HISTÓRIA E ROCK NO BRASIL DOS ANOS 1980.

A música pode ser uma ferramenta historiográfica de extrema importância para que possamos entender melhor o contexto social, cultural e, sobretudo, político de determinado recorte histórico. Prova disso é a grande quantidade de trabalhos acadêmicos relacionados à música, como se pode ver nas referências abaixo.



Em nosso país, por exemplo, na década de 1980, o Brasil vivia os últimos momentos da ditadura militar. O regime já mostrava sinais de cansaço e o modelo econômico proposto por Delfim Neto já não era capaz de influenciar a opinião pública, muito pelo contrário, vivíamos uma das piores crises econômicas de nossa história. O “milagre econômico” dos anos 1970 tinha dado lugar à “década perdida” dos 1980. As manchetes dos jornais estampavam em letras garrafais: inflação, desemprego e recessão.

Na Europa, especialmente na Inglaterra, os jovens haviam rompido com as convenções sociais ao darem surgimento ao movimento punk, onde a ordem era  “do it yourself”, ou faça você mesmo, com músicas de dois ou três acordes criadas e executadas por músicos que não sabiam tocar e cantores que não sabiam cantar. O que valia mesmo era fazer o que se tinha vontade, mesmo sem talento ou conhecimento erudito para tal.

Esse movimento vinha de encontro ao virtuosismo característico do rock progressivo que reinava na época, com acordes super elaborados e canções longas que criavam um clima intimista, onde o público absorvia o som, mas não participava. Diferente do punk, onde não havia virtuoses, pois praticamente ninguém sabia tocar nada e o público interagia completamente com os roqueiros, subindo ao palco e transformando as apresentações em total balbúrdia.


Óbvio que esse movimento daria frutos em terras tropicais. E deu. A juventude bem nascida, “burguesa”, que tinha acesso a discos e revistas, começou a incorporar o espírito punk, e, mesmo sem saber o que era um lá maior sustenido, começou a formar grupos de rock entre os colegas do colégio e a tocar nas garagens dos condomínios.

A repressão política e os problemas sociais seriam o tema mais comum dessa nova música que começava a se desenvolver no Brasil. Além disso, o pessimismo diante da incerteza do futuro, as frustrações com a família e o protesto contra o Estado formavam a via comum das músicas da época, através de bandas que surgiam principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, capital política de onde vieram Plebe Rude e Aborto Elétrico.

Em 1985, a banda Paralamas do Sucesso já era detentora de um certo reconhecimento nacional. Seu vocalista, Herbert Viana foi procurado pelos integrantes da Plebe Rude, banda de forte influência punk. Desse encontro surgiu “O Concreto já Rachou”, um marco no rock brasileiro, que entre outros questionamentos, com reminiscências de João Cabral de Melo Neto, perguntava:

Com tanta riqueza por aí
onde é que está,
cadê sua fração?               

A  banda Aborto Elétrico, que tinha como vocalista um tal de Renato Russo, se fragmentou e deu origem às bandas Legião Urbana e Capital Inicial. As bandas originadas da rupura do Aborto Elétrico mantiveram o discurso panfletário contra o Estado opressor, que caminhava para os seus últimos dias. Logo a ditadura militar se extinguiria e veríamos surgir a Nova República.

Mas, isso é uma outra história.

Para aprender mais, lendo:
RIBEIRO, Júlio Naves. Lugar nenhum ou bora bora? São Paulo: Annabele, 2009.
RAMOS, Eliana Batista. Rock dos anos 80: A construção de uma alternativa de contestação juvenil. 2010. Dissertação para obtenção do título de mestre em História Social. PUC: São Paulo. 2010.
PRADO, Gustavo dos Santos. A juventude dos anos 80 em ação: música, rock e crítica aos valores modernos. revista Desenredos - ISSN 2175-3903 - ano III - número 10 - teresina - piauí – julho agosto setembro de 2011
ROCHEDO, Aline do Carmo. Os filhos da revolução: A juventude urbana e o rock brasileiro dos anos 1980. 2011. Dissertação para obtenção do título de mestre em História Social. UFF: Niterói. 2011.
OSTERNO, Maria do Livramento Rios. A canção engajada no anos 80: O rock não errou. 2009. Dissertação para obtenção do título de mestre em Linguística. UFC: Fortaleza. 2009.
RANGEL, Carlos Roberto Rangel; TRINDADE, Luane Nunes. Rock: Cultura política e movimentos sociais. 2013.
GAMA , André de Araújo; MACIE, Elisângela. História e Música: um Brasil dos anos 80. 2010. http://www.webartigos.com/artigos/historia-e-musica-um-brasil-dos-anos-80/60704/

Para aprender mais, ouvindo no volume máximo:
LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. produtor: Mayrton Bahia. EMI, 1985. LP
PLEBE RUDE. O concreto já rachou. produtor: Herbert Vianna. EMI, 1986. LP.
CAPITAL INICIAL. Capital Inicial. produtor: Bozo Barreti. Polygram, 1986. LP.

Para aprender mais, assistindo:
Somos tão jovens. Direção: Antônio Carlos de Fontoura. Brasil: Imagem Filmes, 2013. 104 min.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

HISTÓRIA, ESCRITA E MATEMÁTICA


Desde os tempos chamados pré-históricos, o homem tem a necessidade da matemática para contabilizar seus rebanhos e sua produção agrícola. O surgimento do excedente e sua comercialização entre as sociedades só fez potencializar a necessidade de uma contabilidade arcaica.


Partindo dessa realidade, os povos da mesopotâmia desenvolveram o sistema de tokens, objetos de argila, como fichas, que apresentavam diversos formatos, como cones, esferas, discos e cilindros. Essas fichas, ou tokens, serviam às necessidades da economia, pois permitiam manter o controle sobre a produção agrícola, e foram expandidos, na fase urbana, para controlar também os bens manufaturados.

Armazenados em invólucros de argila, como uma bola oca, dentro dos quais eles eram guardados e fechados, chamados bulae, os invólucros escondiam os tokens e em sua superfície eram impressas as formas contidas em seu interior. O número de unidades de um produto era expresso pelo número correspondente de marcas na superfície. Uma bola contendo cinco discos, por exemplo, possuía cinco marcas de discos na superfície, podendo ser produzidas, inclusive, por meio da pressão dos próprios tokens contra a argila úmida.


A substituição de tokens por sinais foi o primeiro passo para a escrita, e serviu para o desenvolvimento do comércio e da contabilidade daquelas sociedades. Mais tarde, estes povos trariam mais uma grande contribuição para o desenvolvimento da escrita e matemática: o sistema sexagesimal.

Diferente dos árabes e indianos, que idealizaram o sistema decimal, os sumérios criaram o sistema sexagesimal, que faz parte do nosso cotidiano. Basta dar uma olhada em seu relógio. Uma hora contém 60 minutos e um minuto contém 60 segundos.

No sistema sexagesimal, utilizava-se as três falanges que temos em cada um dos dedos para efetuar a contagem, excetuando-se o polegar, que  servia como auxiliar de contagem. Em uma mão contaríamos de 1 a 12 (utilizando-se das falanges), e na outra mão, seu múltiplo, ou seja, 12, 24, 48 e 60 (utilizando-se os dedos).

Com isso, podemos afirmar que da necessidade de uma contabilidade arcaica para a criação da escrita foi questão de tempo, pois percebeu-se que ao invés de se utilizar dos tokens dentro do bulae, seria mais prático fazer anotações em tabletes de argila, surgindo daí a escrita, os escribas e todo o complexo sistema que se faria, posteriormente, necessário.

Para aprender mais:

ROQUE, Tatiana. História da matemática Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. São Paulo: Zahar. 2010.


SANTOS, Anderson Flávio dos. Sistemas de Numeração Posicionais e não Posicionais. Dissertação para obtenção do título de Mestre em Matemática. UNESP: São José do Rio Preto. 2014